Angola prossegue, já esta quinta-feira, os jogos de qualificação para a edição 2023 do Campeonato Africano das Nações (CAN). Depois de uma vitória e um empate nos dois primeiros jogos de qualificação, contra aRepública Centro-Africana e Madagáscar, os Palancas Negras têm um duplo confronto contra o Gana, o primeiro dos quais, na cidade ganesa de Asokwa.
Em entrevista exclusiva ao Desporto ao Minuto, Pedro Soares Gonçalves, selecionador dos angolanos, passou em revista o seu percurso por este país africano, para onde se mudou de armas e bagagens, em 2015, para concretizar o sonho de novas aventuras na carreira de treinador de futebol.
O técnico, de 47 anos, aterrou no1º de Agosto para trabalhar com os mais jovens, mas rapidamente saltou para os quadros da federação local para trabalhar os diamantes angolanos. O bom trabalho nos escalões mais novos, aliado a momentos de tensão após o CAN'2019, levou Pedro Soares Gonçalves ao comando técnico dos Palancas Negras, há cinco anos.
Pedro Soares Gonçalves falou-nos desta experiência de quase uma década em Angola, das dificuldades iniciais que encontro em África, dos objetivos para o futuro nos Palancas Negras e, claro, do que vem aí na edição 2023 do Campeonato Africano das Nações.
"A minha expectativa é que, perante um dos adversários mais fortes de África, demos luta contra a seleção do Gana"
Como tem visto a evolução do futebol na seleção angolana desde que chegou ao comando dos Palancas Negras, em 2019, até aos dias de hoje?
Temos feito um percurso longo que se iniciou na sequência do CAN'2019 e da eliminação precoce nas qualificações para o CHAN (Campeonato de África das Nações) de 2020. Foi aí que propuseram pegar na seleção principal, quando eu estava em vias de ir para o Campeonato do Mundo com a seleção de sub-17. E tínhamos, ainda, em vista a primeira eliminatória rumo ao Mundial do Qatar. Desde então, deu-se a reformulação completa da seleção principal de Angola. Temos alguns jogadores que se mantêm, mas não são muitos. Praticamente todos estes da diáspora que estão a jogar pela seleção de Angola resultam de um trabalho exaustivo para os conseguir agregar e comprometer com as nossas ideias e, ao mesmo tempo, puxar por estes talentos do futebol angolano.
E a adaptação à equipa principal foi fácil?
Conhecia-os das seleções jovens, principalmente do grupo que esteve no Mundial sub-17 em 2019 no Brasil. Parte do que pretendíamos era agregar as mais-valias do exterior e puxar pelos valores que estão a emergir no futebol angolano. É nesta simbiose que temos vindo a crescer. Já passámos por várias crises, não só a nível desportivo, que deu início a tudo isto, como também financeira, o que nos obrigou a passar por um momento muito duro. Pelo meio, tivemos a pandemia, e, com a nossa estrutura debilitada, ficou ainda mais difícil. Tivemos ainda eleições para a Federação que foram impugnadas e que impediram a direção de tomar posse. Houve ainda corte de fundos da FIFA e governamentais. Foi um turbilhão de coisas… Conseguimos manter o nosso foco perante estas adversidades.
Que tipo de seleção de Angola podemos esperar com o Gana, uma das seleções mais fortes do continente africano e que foi adversária de Portugal no Mundial’2022?
Hoje em dia, já temos uma estrutura que ainda não é aquilo que preconizamos, mas muito mais próxima daquilo que queremos. Temos muito mais opções e acreditamos que podemos ser competitivos. Temos mostrado essa competitividade em todos os jogos, mesmo quando ultrapassámos estes momentos mais difíceis. A minha expectativa é que, perante um dos adversários mais fortes de África, demos luta contra a seleção do Gana. Em 54 seleções de África, só cinco tiveram lugar no Campeonato do Mundo, e o Gana foi uma delas. Só isso mostra o poderio desta seleção. Eles têm um histórico muito forte e, na atualidade, têm jogadores do mais alto nível e que alinham na La Liga, Premier League ou Ligue 1. Nós, portugueses, jogámos contra o Gana, no Campeonato do Mundo, e vimos bem o seu poderio. Vêm nessa sequência de terem estado no Mundial, o que é sempre uma mobilização interna muito forte.
"Aquilo que queremos é manter a perspetiva da qualificação para o CAN, que é o nosso objetivo imediato"
E que futuro prevê para a seleção angolana?
No futuro, queremos atingir o topo do futebol africano. E, se pretendemos estar a esse nível, temos de nos preparar para ombrear com os melhores. É o que vamos ter agora de frente. Estamos a liderar o grupo com o Gana, ambos com quatro pontos. São dois jogos muito importantes, mas não decisivos. Findos estes jogos, vamos ter uma ideia mais cabal sobre qual o nosso real momento. Aquilo que queremos é manter a perspetiva da qualificação para o CAN, que é o nosso objetivo imediato.
Está em Angola desde 2015, quando entrou nos escalões de formação do 1.º de Agosto. Como vê a evolução no futebol angolano desde então? A seleção está agora a colher os frutos desse bom trabalho realizado nas camadas jovens...
Na altura, em 2014, eu conheci o general Hendrick, presidente do 1.º de Agosto, ainda na Academia do Sporting. Estava eu no ginásio, em Alcochete, ele entrou pelo ginásio que estava vazio e ficámos a trocar algumas impressões. Não nos conhecíamos. Ele estava a fazer uma visita de conhecimento pela Europa e disse que queria criar uma academia desportiva em Angola e que fosse uma referência no panorama africano. Algo que permitisse puxar pelos jovens talentos que existem em Angola. Desejei-lhe a melhor sorte, mas nunca pensei que, no futuro, fosse parar ao 1.º de Agosto. Mais tarde, o presidente do clube perspetivou contratar alguns profissionais, nomeadamente do Sporting, fez-nos uma proposta e acabámos por vir uma equipa. Na altura, o Fernando Ferreira, do Benfica, também foi connosco. Fizemos uma equipa de trabalho com a perspetiva de detetar os jovens talentos para depois os rentabilizar e potencializar. Isso permitiu-me conhecer a realidade do futebol angolano por dentro e os talentos emergentes. Além do 1.º de Agosto, também já havia um projeto da Academia de Futebol de Angola, que ainda hoje se mantém.
*E o percurso no Mundial sub-17 potenciou este crescimento...
Este percurso no Mundial sub-17 acaba por ser um marco charneira no futebol juvenil, isto porque abriu Angola para o mundo. Sempre que ia a Portugal, dizia que tínhamos rapazes que acredito que vão progredir e que, com o tempo, vão começar a chegar às grandes Ligas, mas havia pouca credibilidade… África é, sobretudo Camarões, Nigéria, Senegal, Guiné... As pessoas não acreditavam muito naquilo que podia vir de Angola e este percurso que permitiu ir ao Campeonato do Mundo evidenciou que, afinal, Angola também tem muito talento, eventualmente com características diferentes das outras grandes seleções, mas com um talento próprio e genuíno para se jogar futebol. O marco de participar no Mundial alertou os vários agentes desportivos para o que se faz em Angola.
Também se abriram grandes portas com este brilharete?
Eu vi uma grande diferença não só de clubes portugueses, mas muitos empresários interessados e visitas a Angola. De repente, começamos a abrir-nos ao Mundo, e o Mundo acabou por ser mais recetivo ao que vem de Angola. A nível interno, o Girabola tem passado um período difícil. Há alguma incapacidade, especialmente dos clubes menores, de reter os jogadores. E, mesmo nos maiores, houve mudanças. É no conjunto destes fatores que encontro uma explicação para que tudo esteja muito diferente. Quando peguei na seleção A, poucos jogadores tínhamos jogadores nascidos em Angola e que estivessem na diáspora a nível médio/alto. Hoje em dia isso exponenciou. E também os filhos de angolanos que nasceram noutros países da diáspora angolana, como Portugal, Inglaterra ou França, hoje se comprometem a jogar por Angola.
Ida para Angola? Chega a um momento em que sentimos que chegou a hora de conhecer e fazer algo diferente
O que o levou para Angola depois de um período de sucesso na formação do Sporting?
Estava há 16 anos na Academia do Sporting, onde cresci muito a nível profissional e pessoal, criei lá raízes de amizade quase familiares. Sentia-me em casa. Mas chega a um momento em que sentimos que chegou a hora de conhecer e fazer algo diferente, mas que seja enriquecedor na carreira e a nível pessoal. Estava à procura de uma nova aventura. Saí a bem do Sporting e até apanhei uma geração fantástica em que fomos campeões sem derrotas. Foi a melhor forma de fechar a minha ligação ao Sporting a nível profissional.
E já lá vão quase dez anos em Angola...
Surgiu o tal convite de irmos criar um Academia de referência em África. Era um desafio aliciante, mas também extremamente exigente. Quando cheguei é que me deparei que a obra ia ser realmente difícil. Não vim para cá por ligações familiares, nem nunca tinha estado em Angola. Houve esse chamamento do desafio profissional e também a possibilidade de conhecer novas pessoas e culturas que entendi que seria enriquecedor a nível pessoal. Foi este o mote que me levou a iniciar esta epopeia que felizmente foi tendo sucesso e, quase volvidos oito anos, tenho um percurso que me dá alento para continuar.
Que importância tem o CAN para os países africanos? Todos os futebolistas nascidos em África tem o desejo de participar nela pelo menos uma vez…
O CAN é a festa do futebol africano. Já tem muitas edições. Tem o seu trajeto e destaca-se pela genuinidade que há no futebol africano. Está a ganhar cada vez mais uma dimensão maior, as coisas estão a tornar-se mais profissionais. Mas ainda há muita parte daquilo que é genuíno no futebol. Logo aí, cria-se um clima de festa e competitividade, mas, ao mesmo tempo, de desportivismo e de fair-play, que eu acredito ser muito diferente do que se vive noutras competições de outros continentes. Infelizmente, não tive a oportunidade de estar num CAN com a seleção principal, apenas com os sub-17. O CHAN é também essencial para o desenvolvimento dos jogadores africanos e está a ganhar uma notoriedade completamente diferente. Nós estamos a caminhar para entrar numa numa nova etapa. Primeiro, tivemos um período, que ainda não está fechado e nunca ficará, de agregação em que construímos os pilares para termos no futuro uma seleção sólida e de topo de África, juntando um conjunto de valias que se comprometessem em torno do representar Angola e a seleção angolana. Agora, estamos a entrar numa nova etapa que é estarmos presentes em todas as grandes competições continentais. É crucial estarmos no CAN e no CHAN com frequência. É essa consistência que, no tempo, nos vai dar a capacidade de alavancar por todo o universo dos jogadores angolanos, dentro e fora de portas. Eu preconizo, ainda, uma terceira etapa de atingir os lugares cimeiros nas competições continentais africanas. É a ambição deste povo angolano e de quem trabalha na seleção. Mas primeiro temos de dar continuidade ao que temos vindo a fazer.
Houve várias mudanças do CAN de 2019 para este que se avizinha?
No último CAN, Angola tinha mais de metade dos jogadores a nível local e era das poucas seleções com um grupo de trabalho assim. Nas outras equipas a maioria dos jogadores jogava na diáspora. Há aqui um processo de mentalidade em Angola que demora a interiorizar, mas temos vindo a vencer essas barreiras. Temos de olhar para o universo do jogador angolano esteja ele onde estiver. Queremos jogadores comprometidos com as ideias que preconizamos para a seleção angolana, estejam eles na província de Angola ou num grande clube aqui, estejam a jogar na Premier League.
Bruno Paz é o mais recente nome a integrar as convocatórias de Angola, ele que tem um passado ligado às camadas jovens das seleções em Portugal. É importante a chamada destes jogadores com raízes em Angola para melhorar a qualidade do plantel?
Quando peguei na seleção principal, eu procurei desde logo criar um grupo de trabalho que fosse mais sólido e forte ao longo do tempo. Queria agregar as mais-valias desportivas do exterior em torno das nossas ideias. Alguns desses atletas nasceram em Angola, mas foram muito cedo para fora. Outros já são filhos da geração que saiu de Angola, mas que tiveram sempre ligação com o nosso país. Aliado a isso, procurámos puxar pelos valores emergentes e que vinham a dar provas em competições africanas. Temos muitos jovens com capacidade e talento e que precisam de uma oportunidade. No caso concreto do Bruno Paz, ele vai fazer a estreia na convocatória. Mas temos outros casos mais mediáticos como o Hélder Costa, o Lucas João, que também se vai estrear por Angola, o Mbala Nzola, o Jérémie Béla, que não está presente nesta convocatória por lesão, o Estrela… São tudo jogadores com um passado importante ao nível da formação e em clubes de referência. Aquilo que é o perfil que procuramos agregar é um que tenha um passado de formação e de competitividade a nível de clubes de referência, que até possa ter percurso em seleções jovens desses países de referência da diáspora angolana e que depois, por um motivo ou por outro, acaba por não singrar nas seleções principais. Não chegando a esse patamar, e percebendo essa ligação com Angola, o que fazemos é tentar perceber se querem representar a seleção dos Palancas Negras. É o caso agora do Bruno Paz. Temos agora um novo conjunto de jogadores que transformou a cara da seleção angolana, em conjunto com outros que já faziam parte. Já estreámos muitos jogos na equipa principal, inclusive alguns do que estiveram no Mundial sub-17.
E podem haver mais casos como o do Bruno Paz de jogadores que optam por jogar por Angola? Falou-se recentemente no Florentino do Benfica…
Temos um conjunto de jogadores que entendemos que têm o perfil para jogar na seleção angolana. Mas temos sérias limitações e as principais são do nível orçamental. Há um conjunto de iniciativas que vão sendo propostas e nem sempre são concretizadas. E isso leva-nos a ter que procurar vias alternativas, que nem sempre são tão eficazes. Sei perfeitamente que se fizer um conjunto de ações diretamente sobre uma série de jogadores poderei não conseguir convencer todos no momento, mas vou conseguir convencer alguns. Contudo, essas limitações orçamentais levam-nos muitas vezes a optar por soluções diferentes, de muito trabalho à distância, mas que vai permitindo um sucesso. Agora esse sucesso não é imediato como sabemos que poderíamos conseguir com outras condições. No entanto, vamos fazendo esse trabalho de acompanhamento da bolsa de jogadores selecionáveis, mas ao mesmo tempo mantemos a monitorização de todo o universo do jogador angolano.
"Usamos o lema ‘vem crescer connosco’ quando estamos a fazer a integração de novos elementos"
Há muito jogadores com ligações a Angola no seu radar?
Todos os jogadores com ligação a Angola estão na nossa base de dados. Sempre que podemos, dentro das nossas limitações, fazemos uma avaliação do perfil e valia desses atletas. Por fim, e partindo dessa aferição, vamos perceber se é um jogador que pode entrar na bolsa de selecionáveis. Se o for, procuramos fazer as diligências no sentido de o podermos convocar. Há um processo de explicar aos jogadores as ideias que nós temos, que percurso poderá fazer connosco, em que perspetiva é que o jogador pode enriquecer a sua carreira junto de nós. Usamos o lema ‘vem crescer connosco’ quando estamos a fazer a integração de novos elementos.
Há um conjunto de jogadores angolanos que está a sair de Angola rumo a grandes clubes europeus, como o casa do Maestro no Benfica B. Isto prova que o trabalho na formação nos clubes está a ser bem feito?
Eu gostava de dizer que havia essa estrutura… mas não há. O certo é que tudo isto germina com o aparecimento de academias no futebol angolano, umas com mais capacidade do que outras. Foi isso que começou a trabalhar estes jovens talentos. Depois passa pela contratação de recursos humanos com capacidade de potenciar esses mesmos talentos. Foi o que fizeram o 1. de Agosto e a Academia de Futebol de Angola e mais um ou outro clube. Eu tive essa possibilidade e andei no futebol real de Angola, nos bairros a conhecer toda essa dimensão, e percebi o dia a dia e as dificuldades de um jogador jovem, que muitas vezes tem muitos problemas para ir treinar. Perceber isso ajuda-nos a construir um caminho e perceber as dificuldades desse percurso. É impossível que se reproduza aqui aquilo que eu vivi no Sporting durante anos. Claro que há bases que norteiam as ideias em relação à forma de encarar o jogo, mas tudo o que está à volta, como a forma de lidar com o jogador e de o preparar, é completamente distinta. Isso também me permitiu que, quando sou convidado para ser selecionador das camadas jovens de Angola, eu já conhecesse alguns jogadores. Foi ótimo porque já conhecia muito bem a realidade do futebol jovem deste país. Depois fomos rentabilizando essa qualidade. Mas tenho a dizer que há clubes que têm espaços físicos muito limitantes para aquilo que é o processo de desenvolvimento desportivo. A verdade é que vamos transformado o panorama do futebol angolano.